Corre o ano de 1910 e a velha Coimbra parece respirar a cada esquina os ideais republicanos. A universidade vive tempos agitados, os conflitos de ideias parecem permanentes, a facção minoritária de monárquicos parece antever o fim do regime e do soberano. Desesperados tentam manter vivo artificialmente o governo monárquico, que estava mais que moribundo desde que cedeu ao “ultimato Britânico de 1890”.
Defensor acérrimo da causa republicana, Gonçalo Vaz Pereira, filho de um burguês que tinha feito fortuna anos antes à custa do comércio do vinho do Porto, dizia-se mesmo na zona da Régua onde era natural que era o melhor partido de todo norte de Portugal. Detentor de uma personalidade forte, teimoso como o pai e dócil como a mãe, estuda medicina em Coimbra há um ano e meio, tempo mais que suficiente para ser ele já a determinar os destinos da associação académica.
Tem o dom dos grandes oradores, usa da palavra como ninguém, astuto e habilidoso sabe levar as massas nas suas mãos, citando Guerra Junqueiro em “opúsculo Finis Patriae”, exaltava o ódio contra o poder instituído ridicularizando a figura do próprio Rei.
Aos vinte anos já tinha uma multidão de seguidores, alguns inclusivé sugeriam seu nome para ocupar o mais alto cargo da nação no caso da monarquia cair ,tal não era a maneira apaixonada que defendia e expunha as suas ideias.
Hoje é terça-feira, dia de aula de anatomia, mas Gonçalo raramente costuma frequentar as primeiras aulas da manhã, depois das longas noites passadas na taverna da coxa, uma ex mulher da vida que tinha juntado algum dinheiro e agora para além de servir vinho e petiscos, era intermediária de encontros, entre moças da vida e cavalheiros com algumas posses. Dizem as más línguas, que ganhou a alcunha de coxa, uma vez que procurava receber o justo pagamento pelos seus serviços foi esfaqueada numa das pernas, perdendo desde aí o seu maior atributo para os homens, as suas longas e lindas pernas, mas ganhando uma alcunha que por daí em diante substituiria seu nome.
Gonçalo Vaz Pereira, rapaz de mil ideais e farras, apesar da sua dureza exterior, chegando mesmo a ser rude por vezes, não passava de um cordeirinho como a sua mãe dizia na Régua à boca cheia, amigo de toda gente, sempre pronto a ajudar o próximo apesar da sua tristeza natural.
Quem o visse passar na rua suspeitaria certamente que algo de muito grave o atormentava, e não se enganaria em muito pois a lágrima que transportava no canto do olho era mais que saudade, era mágoa de um Amor rasurado mesmo quando ainda embrionário.
Há cinco anos atrás Gonçalo passeava a cavalo pelos verdejantes campos do Douro. Quando morto de sede, ele e seu cavalo procuram fonte onde matar a sede.
Légua atrás de légua, e nem poça nem riacho. O sol está forte, e as alucinações começam a fazerem-se sentirem. Foi então que na longa estrada apareceu um mendigo, sujo e roto como poucos, ao qual Gonçalo perguntou se não haveria por ali perto algum sítio onde pudesse beber e dar de beber ao cavalo. Ele respondeu-lhe que a poucas centenas de metros à frente, havia de encontrar uma vereda que uma linda moça tinha aberto de tanto ir com seu cântaro à fonte. Seguiu recompensando o bom samaritano com uma das muitas moedas que o acompanhavam sempre.
Este agradeceu imenso e seguiu caminho, profetizando bem alto por aqueles campos “ Nobre senhor és e para sempre serás, não sabes, mas hoje teu grande Amor encontrarás”.
Mais à frente meteu pela vereda indicada pelo mendigo, e andou, andou e andou, três quartos de hora depois chegou a um lugar que mais parecia ter saído dos livros que lera anos antes, às escondidas na biblioteca do avô.
Muito boa pessoa mas no que tocava a emprestar seus tesouros, não havia pior, mais facilmente te dá uma moeda de ouro te empresta seus livros.
Nada que Gonçalo não contornasse com incrível facilidade, bastava esperar que o avô fosse cuidar dos negócios da vinha e do vinho, e invadia a biblioteca e profanar seus tesouros, com a conivência da avó.
Aquele sítio que desconhecia, e tanto lhe dizia. Por momentos esqueceu a sede que o atormentara horas à fio, já o cavalo bebia há um bom bocado e ele permanecia com a garganta tão seca como o “sahara”.
Quando ia preparar-se para sorver o precioso liquido, ouve ao longe uma doce melodia que a cada instante parecia estar mais próxima, como se caminhasse na sua direcção.
Aquele chamamento, mais parecia um qualquer encantamento ou feitiço, tal o efeito que produzia no jovem rapaz, que lhe matava a sede, a fome ou qualquer outra necessidade.
O primeiro contacto visual, torna-se tão mais intenso, ampliado pela curiosidade de ver seu rosto, já que Adelaide nunca saía à rua sem o seu lindo véu branco, ordens expressas de sua mãe.
Ao chegar mais perto:
- Bom dia nobre senhor!
Gonçalo tentou responder, mas era tanta a emoção que seus lábios pareciam colados, ele tentava, tentava mas a voz faltava-lhe, ficando ai embasbacado a olhar para ela.
- Senhor, está a sentir-se bem? Cada vez mais confusa com aquela situação embaraçosa, para ambos.
Ele bem tentava mas apenas conseguia gesticular sem nada conseguir dizer.
- Bem tu não és? Não és mudo pois não? Não, não pode ser! Ou pode? Já ouvi falar de gente como tu mas nunca tinha encontrado nenhum…
Gonçalo olha para ele com ar de interrogação, mas acaba derivado à situação criada embarcar nessa farsa. Olhando para o seu reflexo na água não reconhece seu rosto, pois não estava habituado a mentir, fazia-lhe uma certa confusão pessoas que mentiam, mas naquele momento parecia-lhe a melhor solução.
Adelaide chega-se mais perto, e pega-lhe na mão, como se a sua resposta tivesse exorcizado qualquer medo ou receio de pessoas desconhecidas.
Naquele momento, ela sentiu uma enorme pena daquele triste e pobre rapaz quem voz tinha e diz-lhe:
- Olha, não fiques assim encavacado, eu sou a Adelaide e vivo ali no monte do lado. Se quiseres podemos ser amigos. Que me dizes? Vivo aqui longe da população, nunca passa por aqui ninguém, fico tão sozinha sem ninguém com quem falar a não ser a minha mãe. O meu pai já não é vivo, não o cheguei a conhecer, morreu quando ainda era muito novinha.
E tu onde vives? Pois não me podes dizer, mas vestes como os rapazes da cidade. Sim deves ser de lá.
Se me quiseres voltar a ver, ficaria muito contente…
Venho todas tardes a fonte com a minha cantara, aliás tenho que me despachar senão a minha mãe começa logo a resmungar.
Ao vê-la encher o cântaro, subitamente lembra-se que está sequioso por aquele precioso líquido que nela entra.
Mas tem de esperar mais um pouco, porque a fonte é de uma só bica, acabando ela de encher a cantara ele joga-se a goteira e bebe desalmadamente como se não bebesse nada há dias.
Ela fica estupefacta, ao velo beber assim com tamanha intensidade e satisfação.
- Aposto que foi essa sede te trouxe até mim… tenho muita pena mas tenho de ir para não ouvir ralhar minha mãe.
E parte deixando seu perfume a lírios silvestres, segue em frente sem olhar para trás uma só vez. Ele, passada meia hora ainda estava ali sentado perto da fonte a recordar cada instante cada palavra, cada gesto, cada sussurro, e ali ficou pelo menos mais uma hora naquele estado de hipnose. Foi então que se lembrou das sabias palavras que o mendigo lhe havia dito horas antes “Nobre senhor és e para sempre serás, não sabes, mas hoje teu grande Amor encontrarás.”, aquelas palavras que momentos antes pareciam-lhe esquecidas, agora vinham-lhe à memória a cada instante.
O cavalo já tinha descansado o suficiente, e era chegada a hora de partir. Seguiu num galope acelerado pois em breve iria escurecer, e as estradas à noite tornavam-se perigosas, propicias a emboscadas de bandos de assaltantes.
Já Gonçalo no descanso do seu lar, deitado na sua enorme cama de casal sonhava acordado, sonhava de olhos bem abertos, tentava desvendar como seria o rosto daquela rapariga que com suas delicadas mãos segurava o cântaro.
Mal podia esperar pelo dia raiar, para de novo beber com seus olhos daquela fonte milagrosa.
De repente ouve-se uns passos de alguém a caminhar pelo corredor, pelo barulho desajeitado do andar só pode ser seu pai, que depressa chega e bate à porta.
- Posso entrar? Fala com uma voz grossa e autoritária.
- Sim, está aberta.
Entra com o seu ar altivo, alto como poucos e senhor de uma barriga bem redonda, só a sua presença metia respeito a qualquer um, quanto mais não fosse pelo seu majestoso bigode que estimava mais que tudo.
- Amanhã bem cedo, logo ao alvorecer quero-te lá em baixo, já vestido e com o pequeno-almoço tomado.
Temos de ir ao Porto. Estamos entendidos?
- Sim pai!!!
Sem mais dizer retirou-se, deixando Gonçalo frustrado por ver seu sonho desfeito, de no dia seguinte ver a misteriosa rapariga do véu. Ainda por cima nem sabia qual o motivo por o pai fazia tanta questão da sua presença, ainda para mais no Porto não fazia o menor sentido.
Mas que importava, se tinha mais em que pensar. Voltar atrás no tempo e reviver cada minuto de seu encontro fortuito com Adelaide… A noite parecia-lhe tão pequena para nela conter todos os atributos da sua bela Adelaide.
Não havia pressa, nem sono para adormecer, embora a viajem do dia seguinte fosse feita de carroça por caminhos tortuosos. Ficava ali deitado recolhendo-se a uma introspecção por tentar saber o que realmente sentia por ela. Já tinha ouvido falar em Amor, mas não sabia bem ao certo como isso se passava, jamais poderia pensar em um dia poder vir a sentir algo parecido já que uma prima sua lhe havia dito que Amar era gostar mais da pessoa Amada do que de si próprio, fazer tudo por ela, nem que fosse apenas para a ver ao longe, ou afastar-se dela por tanto gostar só para que ela pudesse ser feliz.
Estas palavras sentidas que a prima lhe havia dito, à anos atrás marcaram-no profundamente, tanto que de vez enquanto lhe vinham à memoria tal como agora.
O dia amanhece, e o galo faz suar o despertador logo ao alvorar, de imediato Gonçalo se lança num corrupio, numa roda-viva por estar ao lado do pai, quando este o chamasse. Não queria de modo algum causar a sua irritação, sabia muito bem de viagens anteriores, como ele ficava com mau humor nestas viagens, tudo o irritava.
E Gonçalo hoje só queria ir quieto num canto a sonhar acordado, a pensar na moça do véu.
- Gonçalo! Estás pronto?
- Estou aqui pai. Estou quase.
- vá que temos muito caminho para andar, o Porto ainda fica a umas boas léguas daqui, e a estrada cada vez está pior. Tudo culpa deste governo. Desta corja de incompetentes que mandam no país.
E saíram. Hoje era o dia da grandiosa feira anual de agricultura e o sr. Vaz Pereira não queria faltar de modo algum, para ver as novidades em alfaias. E de algum modo ligar o filho mais à terra. Foi então que se lembrou dos tempos, em que o seu pai o levava à mesma feira, e ele vinha de lá boquiaberto, era o acontecimento do ano na sua vida. Mas Gonçalo não amava a terra como ele, só queria saber dos estudos, de ler e viajar, nada mais absurdo para um Vaz Pereira. Gerações e gerações de homens ligados à terra, à lavoura e agora seu pai também ao comércio do vinho do Porto.
Não podia ficar assim, ela como se ele fosse o único que não tivesse sido capaz de educar o filho, de lhe imbuir o gosto pelo campo, pelas suas pessoas e artes. Sentia uma enorme frustração, porque Gonçalo cada vez mais se afastava deste modo de vida e pensar.
A viagem não podia ser mais tediosa e cansativa, nem para descansar era propícia, devidas às irregularidades do terreno. Fizeram apenas três paragens para descanso dos cavalos e merendar qualquer coisa, porque isto de viajar dava cá uma fome ao Sr. Vaz Pereira, com a sua enorme e redonda barriga, não havia merenda que chegasse.
Eis que chegados ao Porto, parece que a vida nasce a cada esquina para quem está habituado a ver as ruas desertas da Régua em hora de almoço. Aqui uma multidão parece passear sem saber bem para onde vai, andam de um lado para o outro sem que ninguém perceba bem porquê, de banca em banca perguntando preços de coisas que nunca poderiam comprar.
Nota-se que são pessoas pobres que nada têm, e a feira para elas é o único momento do ano em que podem sonhar ser uma pessoa diferente, como que embarcassem numa viagem durante aqueles dias sem destino que lhes mudaria a personalidade, fazendo-os crer serem ricos de barriga vazia.
Gonçalo anda de cabeça baixa, olhando o vazio que só o chão lhe proporciona, não disfarçando minimamente que estava ali contrariado, para desgosto do pai.
Foi então que num raro momento que levanta a cabeça para ver um potro que seu pai estaria interessado em levar, que vê por entre a multidão o mendigo que na tarde anterior lhe havia dito as intrigantes palavras “Nobre senhor és e para sempre serás, não sabes, mas hoje teu grande Amor encontrarás”. E mesmo sem dar conta desvia-se do pai e do criado, indo ao encontro do mendigo, no intuito de saber mais alguma coisa da misteriosa moça do véu.
- Oh!!! Nobre senhor bons olhos o vejam. Vi que conseguiu encontrar a fonte. E para vir falar comigo, encontrou também a doce Adelaide com o seu cântaro.
- Sim. O que sabes mais dessa moça? Diz-me por favor.
- Bem que o nobre senhor deseja saber ao certo?
- Tudo. A sua vida toda.
- Bem isso é uma longa história. Se o nobre senhor estiver tempo para me ouvir.
Adelaide é filha de Maria das Dores, uma mulher cujo o marido se matou, pouco depois de Adelaide nascer. Dizem as más línguas, que depois de saber que a mulher o traia com o frade Cortiças. Há mesmo quem diga que ela é filha do frade.
Pobre Adelaide, vive debaixo daquele véu, isolada do mundo, refém das vontades da mãe, que ainda não tinha nascido já estava prometida a servir a Jesus num convento, está apenas à espera de fazer 16 anos para poder entrar, o que vai acontecer em pouquíssimos meses.
- Oh não. A minha cruz não podia ser maior.
- A coitadinha gosta tanto da mãe, que lhe faz todas as vontades. Não há rapariga neste mundo como aquela.
- Obrigado. Foi-me muito útil esta prosa.
E saiu dali recompensando muito bem o mendigo, pela informação prestada. Escondendo o rosto, amargurado por lágrimas que escorriam pelo rosto mesmo sem pedir licença.
- Meu Deus porque me obrigas a provar das próprias lágrimas? Porque és tão injusto com este teu filho?
E foi de mansinho juntar-se a seu pai e ao criado, que nem tinham dado pela sua falta, de tão interessados que estavam em contemplar as feirantes.
Para ele não tinha acabado a feira mas sim a vida, não compreendia a sua sina. Nunca tinha gostado de ninguém, e quando isso acontece, é um Amor mal fadado.
As pessoas que falavam com ele, mas nada consegue ouvir ou reter, na sua mente só vê a bela Adelaide vestida de freira, passeando no pátio de um qualquer convento.