domingo, 13 de julho de 2008

Sinopse

Um Romance histórico para quem acredita no Amor para além da morte… O enredo desenvolve-se no início do séc. XX entre a Régua no Douro vinhateiro e a velha Coimbra, cidade de Amores platónicos e paixões proibidas, numa altura conturbada da sociedade por conflitos entre monárquicos e republicanos. Um história apaixonante sobre um Amor Imortal, chegando até aos nossos dias em forma de lenda. Narrado agora de forma sublime pela genialidade de Pedro Lopes.

Prefácio

Prefácio


Numa narração digna de uma grande história de Amor surge esta obra de Pedro Lopes – Um Amor Perfeito numa Vida Imperfeita.
Após séculos e séculos de Monarquia em Portugal esta se encaminha para o seu crepúsculo final...
É neste ambiente conturbado e dividido por conflitos entre Monárquicos e Republicanos que Gonçalo Vaz Pereira, filho de um abastado comerciante do vinho do Porto e estudante de Medicina em Coimbra.
Transforma-se num ardente defensor da causa republicana, apesar de seu pai ver de forma desconfiada o seu rumo destoante, nos aspectos políticos em que ele ia se aprofundando.
Com um enredo envolvente do princípio ao fim relata-nos a história de um Amor imortal.
Gonçalo que à primeira vista se encanta e de pronto se apaixona por Adelaide de Marialva, uma bonita aldeã. No entanto o amor surge com sua imprevisibilidade, unindo duas vidas completamente distintas. Um amor de facto perfeito.
O desenlace passa-se entre Régua no Douro vinhateiro e a velha Coimbra, cidade dos encantos de D. Pedro e Inês de Castro.
O leitor verá o preto sobre o branco destas páginas transformarem em imagens coloridas ganharem forma no seu imaginário. A lenda resiste e não cai no escuro do esquecimento, reavivada através da grandiosidade do talento de Pedro Lopes ao transmitir-nos esta linda história de um Amor que vive para além da morte.





Cláudio Sousa Pereira

Capitulo I

Corre o ano de 1910 e a velha Coimbra parece respirar a cada esquina os ideais republicanos. A universidade vive tempos agitados, os conflitos de ideias parecem permanentes, a facção minoritária de monárquicos parece antever o fim do regime e do soberano. Desesperados tentam manter vivo artificialmente o governo monárquico, que estava mais que moribundo desde que cedeu ao “ultimato Britânico de 1890”.
Defensor acérrimo da causa republicana, Gonçalo Vaz Pereira, filho de um burguês que tinha feito fortuna anos antes à custa do comércio do vinho do Porto, dizia-se mesmo na zona da Régua onde era natural que era o melhor partido de todo norte de Portugal. Detentor de uma personalidade forte, teimoso como o pai e dócil como a mãe, estuda medicina em Coimbra há um ano e meio, tempo mais que suficiente para ser ele já a determinar os destinos da associação académica.
Tem o dom dos grandes oradores, usa da palavra como ninguém, astuto e habilidoso sabe levar as massas nas suas mãos, citando Guerra Junqueiro em “opúsculo Finis Patriae”, exaltava o ódio contra o poder instituído ridicularizando a figura do próprio Rei.
Aos vinte anos já tinha uma multidão de seguidores, alguns inclusivé sugeriam seu nome para ocupar o mais alto cargo da nação no caso da monarquia cair ,tal não era a maneira apaixonada que defendia e expunha as suas ideias.


Hoje é terça-feira, dia de aula de anatomia, mas Gonçalo raramente costuma frequentar as primeiras aulas da manhã, depois das longas noites passadas na taverna da coxa, uma ex mulher da vida que tinha juntado algum dinheiro e agora para além de servir vinho e petiscos, era intermediária de encontros, entre moças da vida e cavalheiros com algumas posses. Dizem as más línguas, que ganhou a alcunha de coxa, uma vez que procurava receber o justo pagamento pelos seus serviços foi esfaqueada numa das pernas, perdendo desde aí o seu maior atributo para os homens, as suas longas e lindas pernas, mas ganhando uma alcunha que por daí em diante substituiria seu nome.
Gonçalo Vaz Pereira, rapaz de mil ideais e farras, apesar da sua dureza exterior, chegando mesmo a ser rude por vezes, não passava de um cordeirinho como a sua mãe dizia na Régua à boca cheia, amigo de toda gente, sempre pronto a ajudar o próximo apesar da sua tristeza natural.
Quem o visse passar na rua suspeitaria certamente que algo de muito grave o atormentava, e não se enganaria em muito pois a lágrima que transportava no canto do olho era mais que saudade, era mágoa de um Amor rasurado mesmo quando ainda embrionário.
Há cinco anos atrás Gonçalo passeava a cavalo pelos verdejantes campos do Douro. Quando morto de sede, ele e seu cavalo procuram fonte onde matar a sede.
Légua atrás de légua, e nem poça nem riacho. O sol está forte, e as alucinações começam a fazerem-se sentirem. Foi então que na longa estrada apareceu um mendigo, sujo e roto como poucos, ao qual Gonçalo perguntou se não haveria por ali perto algum sítio onde pudesse beber e dar de beber ao cavalo. Ele respondeu-lhe que a poucas centenas de metros à frente, havia de encontrar uma vereda que uma linda moça tinha aberto de tanto ir com seu cântaro à fonte. Seguiu recompensando o bom samaritano com uma das muitas moedas que o acompanhavam sempre.
Este agradeceu imenso e seguiu caminho, profetizando bem alto por aqueles campos “ Nobre senhor és e para sempre serás, não sabes, mas hoje teu grande Amor encontrarás”.
Mais à frente meteu pela vereda indicada pelo mendigo, e andou, andou e andou, três quartos de hora depois chegou a um lugar que mais parecia ter saído dos livros que lera anos antes, às escondidas na biblioteca do avô.
Muito boa pessoa mas no que tocava a emprestar seus tesouros, não havia pior, mais facilmente te dá uma moeda de ouro te empresta seus livros.
Nada que Gonçalo não contornasse com incrível facilidade, bastava esperar que o avô fosse cuidar dos negócios da vinha e do vinho, e invadia a biblioteca e profanar seus tesouros, com a conivência da avó.
Aquele sítio que desconhecia, e tanto lhe dizia. Por momentos esqueceu a sede que o atormentara horas à fio, já o cavalo bebia há um bom bocado e ele permanecia com a garganta tão seca como o “sahara”.
Quando ia preparar-se para sorver o precioso liquido, ouve ao longe uma doce melodia que a cada instante parecia estar mais próxima, como se caminhasse na sua direcção.
Aquele chamamento, mais parecia um qualquer encantamento ou feitiço, tal o efeito que produzia no jovem rapaz, que lhe matava a sede, a fome ou qualquer outra necessidade.
O primeiro contacto visual, torna-se tão mais intenso, ampliado pela curiosidade de ver seu rosto, já que Adelaide nunca saía à rua sem o seu lindo véu branco, ordens expressas de sua mãe.
Ao chegar mais perto:

- Bom dia nobre senhor!

Gonçalo tentou responder, mas era tanta a emoção que seus lábios pareciam colados, ele tentava, tentava mas a voz faltava-lhe, ficando ai embasbacado a olhar para ela.

- Senhor, está a sentir-se bem? Cada vez mais confusa com aquela situação embaraçosa, para ambos.
Ele bem tentava mas apenas conseguia gesticular sem nada conseguir dizer.

- Bem tu não és? Não és mudo pois não? Não, não pode ser! Ou pode? Já ouvi falar de gente como tu mas nunca tinha encontrado nenhum…

Gonçalo olha para ele com ar de interrogação, mas acaba derivado à situação criada embarcar nessa farsa. Olhando para o seu reflexo na água não reconhece seu rosto, pois não estava habituado a mentir, fazia-lhe uma certa confusão pessoas que mentiam, mas naquele momento parecia-lhe a melhor solução.
Adelaide chega-se mais perto, e pega-lhe na mão, como se a sua resposta tivesse exorcizado qualquer medo ou receio de pessoas desconhecidas.
Naquele momento, ela sentiu uma enorme pena daquele triste e pobre rapaz quem voz tinha e diz-lhe:

- Olha, não fiques assim encavacado, eu sou a Adelaide e vivo ali no monte do lado. Se quiseres podemos ser amigos. Que me dizes? Vivo aqui longe da população, nunca passa por aqui ninguém, fico tão sozinha sem ninguém com quem falar a não ser a minha mãe. O meu pai já não é vivo, não o cheguei a conhecer, morreu quando ainda era muito novinha.
E tu onde vives? Pois não me podes dizer, mas vestes como os rapazes da cidade. Sim deves ser de lá.
Se me quiseres voltar a ver, ficaria muito contente…
Venho todas tardes a fonte com a minha cantara, aliás tenho que me despachar senão a minha mãe começa logo a resmungar.

Ao vê-la encher o cântaro, subitamente lembra-se que está sequioso por aquele precioso líquido que nela entra.
Mas tem de esperar mais um pouco, porque a fonte é de uma só bica, acabando ela de encher a cantara ele joga-se a goteira e bebe desalmadamente como se não bebesse nada há dias.
Ela fica estupefacta, ao velo beber assim com tamanha intensidade e satisfação.

- Aposto que foi essa sede te trouxe até mim… tenho muita pena mas tenho de ir para não ouvir ralhar minha mãe.

E parte deixando seu perfume a lírios silvestres, segue em frente sem olhar para trás uma só vez. Ele, passada meia hora ainda estava ali sentado perto da fonte a recordar cada instante cada palavra, cada gesto, cada sussurro, e ali ficou pelo menos mais uma hora naquele estado de hipnose. Foi então que se lembrou das sabias palavras que o mendigo lhe havia dito horas antes “Nobre senhor és e para sempre serás, não sabes, mas hoje teu grande Amor encontrarás.”, aquelas palavras que momentos antes pareciam-lhe esquecidas, agora vinham-lhe à memória a cada instante.
O cavalo já tinha descansado o suficiente, e era chegada a hora de partir. Seguiu num galope acelerado pois em breve iria escurecer, e as estradas à noite tornavam-se perigosas, propicias a emboscadas de bandos de assaltantes.

Já Gonçalo no descanso do seu lar, deitado na sua enorme cama de casal sonhava acordado, sonhava de olhos bem abertos, tentava desvendar como seria o rosto daquela rapariga que com suas delicadas mãos segurava o cântaro.
Mal podia esperar pelo dia raiar, para de novo beber com seus olhos daquela fonte milagrosa.
De repente ouve-se uns passos de alguém a caminhar pelo corredor, pelo barulho desajeitado do andar só pode ser seu pai, que depressa chega e bate à porta.

- Posso entrar? Fala com uma voz grossa e autoritária.
- Sim, está aberta.

Entra com o seu ar altivo, alto como poucos e senhor de uma barriga bem redonda, só a sua presença metia respeito a qualquer um, quanto mais não fosse pelo seu majestoso bigode que estimava mais que tudo.

- Amanhã bem cedo, logo ao alvorecer quero-te lá em baixo, já vestido e com o pequeno-almoço tomado.
Temos de ir ao Porto. Estamos entendidos?
- Sim pai!!!

Sem mais dizer retirou-se, deixando Gonçalo frustrado por ver seu sonho desfeito, de no dia seguinte ver a misteriosa rapariga do véu. Ainda por cima nem sabia qual o motivo por o pai fazia tanta questão da sua presença, ainda para mais no Porto não fazia o menor sentido.
Mas que importava, se tinha mais em que pensar. Voltar atrás no tempo e reviver cada minuto de seu encontro fortuito com Adelaide… A noite parecia-lhe tão pequena para nela conter todos os atributos da sua bela Adelaide.
Não havia pressa, nem sono para adormecer, embora a viajem do dia seguinte fosse feita de carroça por caminhos tortuosos. Ficava ali deitado recolhendo-se a uma introspecção por tentar saber o que realmente sentia por ela. Já tinha ouvido falar em Amor, mas não sabia bem ao certo como isso se passava, jamais poderia pensar em um dia poder vir a sentir algo parecido já que uma prima sua lhe havia dito que Amar era gostar mais da pessoa Amada do que de si próprio, fazer tudo por ela, nem que fosse apenas para a ver ao longe, ou afastar-se dela por tanto gostar só para que ela pudesse ser feliz.
Estas palavras sentidas que a prima lhe havia dito, à anos atrás marcaram-no profundamente, tanto que de vez enquanto lhe vinham à memoria tal como agora.
O dia amanhece, e o galo faz suar o despertador logo ao alvorar, de imediato Gonçalo se lança num corrupio, numa roda-viva por estar ao lado do pai, quando este o chamasse. Não queria de modo algum causar a sua irritação, sabia muito bem de viagens anteriores, como ele ficava com mau humor nestas viagens, tudo o irritava.
E Gonçalo hoje só queria ir quieto num canto a sonhar acordado, a pensar na moça do véu.

- Gonçalo! Estás pronto?
- Estou aqui pai. Estou quase.
- vá que temos muito caminho para andar, o Porto ainda fica a umas boas léguas daqui, e a estrada cada vez está pior. Tudo culpa deste governo. Desta corja de incompetentes que mandam no país.

E saíram. Hoje era o dia da grandiosa feira anual de agricultura e o sr. Vaz Pereira não queria faltar de modo algum, para ver as novidades em alfaias. E de algum modo ligar o filho mais à terra. Foi então que se lembrou dos tempos, em que o seu pai o levava à mesma feira, e ele vinha de lá boquiaberto, era o acontecimento do ano na sua vida. Mas Gonçalo não amava a terra como ele, só queria saber dos estudos, de ler e viajar, nada mais absurdo para um Vaz Pereira. Gerações e gerações de homens ligados à terra, à lavoura e agora seu pai também ao comércio do vinho do Porto.
Não podia ficar assim, ela como se ele fosse o único que não tivesse sido capaz de educar o filho, de lhe imbuir o gosto pelo campo, pelas suas pessoas e artes. Sentia uma enorme frustração, porque Gonçalo cada vez mais se afastava deste modo de vida e pensar.
A viagem não podia ser mais tediosa e cansativa, nem para descansar era propícia, devidas às irregularidades do terreno. Fizeram apenas três paragens para descanso dos cavalos e merendar qualquer coisa, porque isto de viajar dava cá uma fome ao Sr. Vaz Pereira, com a sua enorme e redonda barriga, não havia merenda que chegasse.
Eis que chegados ao Porto, parece que a vida nasce a cada esquina para quem está habituado a ver as ruas desertas da Régua em hora de almoço. Aqui uma multidão parece passear sem saber bem para onde vai, andam de um lado para o outro sem que ninguém perceba bem porquê, de banca em banca perguntando preços de coisas que nunca poderiam comprar.
Nota-se que são pessoas pobres que nada têm, e a feira para elas é o único momento do ano em que podem sonhar ser uma pessoa diferente, como que embarcassem numa viagem durante aqueles dias sem destino que lhes mudaria a personalidade, fazendo-os crer serem ricos de barriga vazia.
Gonçalo anda de cabeça baixa, olhando o vazio que só o chão lhe proporciona, não disfarçando minimamente que estava ali contrariado, para desgosto do pai.
Foi então que num raro momento que levanta a cabeça para ver um potro que seu pai estaria interessado em levar, que vê por entre a multidão o mendigo que na tarde anterior lhe havia dito as intrigantes palavras “Nobre senhor és e para sempre serás, não sabes, mas hoje teu grande Amor encontrarás”. E mesmo sem dar conta desvia-se do pai e do criado, indo ao encontro do mendigo, no intuito de saber mais alguma coisa da misteriosa moça do véu.

- Oh!!! Nobre senhor bons olhos o vejam. Vi que conseguiu encontrar a fonte. E para vir falar comigo, encontrou também a doce Adelaide com o seu cântaro.
- Sim. O que sabes mais dessa moça? Diz-me por favor.
- Bem que o nobre senhor deseja saber ao certo?
- Tudo. A sua vida toda.
- Bem isso é uma longa história. Se o nobre senhor estiver tempo para me ouvir.
Adelaide é filha de Maria das Dores, uma mulher cujo o marido se matou, pouco depois de Adelaide nascer. Dizem as más línguas, que depois de saber que a mulher o traia com o frade Cortiças. Há mesmo quem diga que ela é filha do frade.
Pobre Adelaide, vive debaixo daquele véu, isolada do mundo, refém das vontades da mãe, que ainda não tinha nascido já estava prometida a servir a Jesus num convento, está apenas à espera de fazer 16 anos para poder entrar, o que vai acontecer em pouquíssimos meses.
- Oh não. A minha cruz não podia ser maior.
- A coitadinha gosta tanto da mãe, que lhe faz todas as vontades. Não há rapariga neste mundo como aquela.
- Obrigado. Foi-me muito útil esta prosa.

E saiu dali recompensando muito bem o mendigo, pela informação prestada. Escondendo o rosto, amargurado por lágrimas que escorriam pelo rosto mesmo sem pedir licença.

- Meu Deus porque me obrigas a provar das próprias lágrimas? Porque és tão injusto com este teu filho?

E foi de mansinho juntar-se a seu pai e ao criado, que nem tinham dado pela sua falta, de tão interessados que estavam em contemplar as feirantes.
Para ele não tinha acabado a feira mas sim a vida, não compreendia a sua sina. Nunca tinha gostado de ninguém, e quando isso acontece, é um Amor mal fadado.
As pessoas que falavam com ele, mas nada consegue ouvir ou reter, na sua mente só vê a bela Adelaide vestida de freira, passeando no pátio de um qualquer convento.

Capitulo II

Passou um mês de noites cadavéricas, passadas em claro... de tentativas frustradas para esquecer a rapariga do rosto encoberto. Tudo fez por esquece-la, mas tudo foi em vão.
Esquecer Adelaide era tarefa ingrata quando o coração estava sedento por a Amar, parece que quanto mais queria esquece-la mais ela lhe vinha à memória. Nada resultava de facto, tudo o fazia lembrar, desde a coisa mais insignificante até ao acontecimento mais importante.
A sua dor a cada dia que passava em vez de diminuir, agudizava-se cada vez mais, ao mesmo tempo que as saudades se tornavam insuportáveis. Tornando-se inevitável um novo encontro desta vez tudo menos casual, naquela mesma fonte.
Vê-la de novo, talvez até lhe contar que não era deficiente auditivo, e que estava a gostar dela.
Mas para quê? Se ela estava a pouquíssimos meses de ingressar no convento de freiras, como lhe havia confirmado o mendigo, e conforme era vontade de sua mãe.
Que dilema, não saber o que decidir, se ouvir a voz da razão ou do coração.
O ritual de adormecer ao pensar como seria o seu rosto, e o acordar tornava-se tão mais doloroso por nem seus contornos saber.
Quando um belo dia passeava, já perto dos campos que levavam à fonte de Adelaide, não resistiu à tentação de fazer um enorme desvio, para tentar ver a musa dos seus sonhos.
Mas desta vez foi preparado, munido de caneta e bloco para com ela poder comunicar.
Pois não sabia como lhe dizer que tudo não passou dum enorme equivoco, por outro lado não queria que ela ficasse com uma falsa impressão dele, que fez de propósito para se aproximar dela. E como seu Amor era totalmente impossível, nem valia a pena perder tempo, a se explicar perante ela, acabar com a boa imagem que ela tem de si. Para quê? Se ela daqui a uns míseros mesitos estará enclausurada, cumprindo a pena que sua própria mãe a condenou.
Como a vida dá voltas e voltas, quem iria dizer que este rapaz ia gostar de alguém sem que seu rosto pudesse apreciar.
A galope seguiu na companhia do seu fiel amigo Fandango, um cavalo que quando ainda potro, seu pai estivera para o abater por ter uma ferida numa das patas, que se julgava incurável, e que fazia o animal estar numa lenta agonia. Foi a intervenção de Gonçalo que estava muito apegado ao animal, que o impediu, foi o único que acreditou que a recuperação era possível como mais tarde se veio a confirmar. Quando já ninguém acreditava, eis que surge curado. Sendo hoje o único cavalo que monta, dos muitos que ostentam o brasão dos Vaz Pereira em seu dorso.
Como todas as tardes Adelaide vai com o seu cântaro à fonte, quando segue pela vereda que dá acesso à fonte, ouve o relinchar de um cavalo, e logo pensa se tratar do jovem de bonitas feições do outro dia. Quer muito que seja ele.

- Espero bem que seja ele!
Preciso tanto falar com alguém que não seja a minha mãe. Não é que não goste de falar com ela, mas é diferente!
Alem dela só tenho o frade Cortiças, que me vem ver uma vez por semana, para me preparar para os votos.

Ao ver que é Gonçalo, liberta um dos seus sorrisos por detrás do véu.
Ele chega e logo a cumprimenta como um verdadeiro cavalheiro, fazendo-lhe uma vénia e beijando-lhe a mão respeitosamente. E faz-lhe sinal para que se sentem no resguardo da fonte.
Para grande espanto e entusiasmo dela, ele tira um bloco e caneta da algibeira.

- Uhm!!! Que grande ideia assim podemos falar os dois. Eu falo e tu escreves. Como te chamas?
- Gonçalo Vaz Pereira.
- És da família dos Vaz Pereira da Régua?
- Sim…
- Oh! A minha mãe fala muito do teu pai, diz que é um homem muito rico. E perdoa-me a inconfidência, diz também que é muito mau. Será verdade?
- Assim tanto também não, mas sim é um tanto ou quanto rude com as pessoas com quem lida.
- Diz também que têm uma enorme casa na Régua, e uma quinta enorme no Douro vinhateiro. Será também verdade?
- Sim, tirando a parte do enorme, porque também não é assim tão grande quanto isso. Mas é grande, demorarias meio dia para a atravessar a cavalo em galope acelerado.
- E tu trabalhas lá?
- Não, eu estudo no liceu de Coimbra. O meu sonho é um dia vir a ser médico. Mas receio não ser possível.
- Porquê?
- O meu pai quer que eu siga as suas pisadas, que cuide dos negócios da família e da quinta. Mas o que eu gostava mesmo era de ir de terra em terra, ajudar as pessoas, através da medecina…
- Sei, como frade Cortiças? Ele também anda de aldeia em aldeia a ajudar as pessoas.
- Bem é um pouco diferente, ele cuida da alma, eu proponha-me a cuidar do corpo.
- Pois!!!
- Queria-te pedir uma coisa muito importante para mim.
- Então pede logo!
- Se podias levantar o véu nem que fosse só por um instante?
- Bem sabes que não posso. Porque é uma promessa da minha mãe, que tenho de cumprir.
- Eu acho que só somos obrigados a cumprir aquilo que de facto nos comprometemos a cumprir por vontade própria.
- Sim eu sei, o frade Cortiças também já me disse o mesmo.
Vou pensar, ou melhor já tenho a resposta…
- E qual é? Diz-me…
- Amanhã se tiveres aqui, levanto para ti.
- Está bem, para quem já esperou um mês, não vai ser um dia a mais que vai fazer diferença.
- Agora tenho de encher o cântaro e ir…

E assim fez, encheu o cântaro e saiu apresada, que sua mãe já devia andar à sua procura.
Gonçalo também já não fica muito mais, e segue montando o Fandango. Passando o caminho todo a enumerar a este as qualidades da sua musa. Para ele a viagem de regresso foi inesquecível, parecia que os campos tinham ficado mais verdes, as flores mais coloridas, até os pássaros não paravam de chilrear doces melodias.
O que mudaria depois de ver seu rosto?
Um rosto puro, singelo, casto, virgem de olhares indiscretos como o seu.
Como seria seus traços? Tantas interrogações, que amanhã teriam a sua resposta.
Ali ia ele, confidenciando suas duvidas e incertezas, ao fiel amigo Fandango, como se ele o entendesse e lhe desse sempre os melhores conselhos.
A manhã seguinte chegou cheia de graça, para mostrar as olheiras que as insónias deixaram. Queria lá saber, se hoje era o dia pelo qual tinha esperado o ultimo mês. Se duvidas houvesse que a curiosidade faz estragos, elas já estavam desvanecidas à muito. Pois Gonçalo já não era a mesma pessoa de há tempos atrás, tinha sofrido uma metamorfose que só o Amor é capaz de conseguir. Uma viragem de cento e oitenta graus na sua vida.
Antes era um rapaz super activo, brincalhão, sempre bem disposto e a matutar traquinices. Mas desde que tinha tomado conhecimento do triste fado de Adelaide, nunca mais tinha esboçado um sorriso, tinha-se tornado numa pessoa fechada, introvertida e introspectiva, voltado para dentro, para si mesmo, sem interesse algum pela vida, pelo mundo exterior. A não ser pela rapariga do rosto misterioso, como era conhecida ali na zona da Régua.
O dia esperado chegou de mansinho… nem chegou a haver noite na qual tivesse dormido. Mas ainda faltava tanto, cada hora parecia anos que custavam a passar.
A ansiedade era tanta, que chegou ao ponto de não aguentar mais e resolver esperar na fonte onde jorravam as águas mais cristalinas. Lá, sentia-se mais perto dela. Feliz por estar perto, mas mais feliz ainda por daqui a pouco estar à distância de um bater de coração de Adelaide. Nem podia acreditar ser verdade…
Ela aparece ao longe nua de seu véu, com os cabelos soltos ao vento, numa miragem sem igual, era mais linda do que alguma vez tinha imaginado. Uma verdadeira Princesinha que aprisionava todos os raios de sol…
Não há palavras que possam descrever, a intraduzível sensação de prazer pela qual seus olhos se tinham vidrado…
Era o sol na sua forma terrena, que aparecera só para ele naquela tarde nublada.

- Olá! Vês que cumpro o que prometo?

Gonçalo estava outra vez paralisado, privado de sentidos, afónico mesmo que quisesse falar não conseguiria, então pega no bloco:

- Agora percebo! Porque usas o véu, és tão linda que até é pecado olhar para ti… O verde em teu olhar são as mais belas esmeraldas que alguma mulher podia possuir, são teu tesouro, agora também um pouco meu, porque nunca mais as vou esquecer, por mais dias que venha a viver…
- Não digas isso, não é verdade. Sou apenas uma rapariga igual a tantas outras. Aposto que já viste muito mais bonitas.
- Com efeito não. Também seria impossível porque mais linda não pode haver.

Ela sorri, e o coração dele para, o seu corpo deixa de ser irrigado, tudo deixa de ser real entra num mundo de fantasia. Pensa em seus lábios acariciar com os seus, pegar na mão dela e rodopiar alegremente. Dizer-lhe o quanto está feliz por estar ali com ela, e o quanto lhe é cara.
Mas de repente acorda e ela já meteu o véu de novo.

- Mas porque voltaste a meter?
- Tenho de ir. A minha mãe ontem ralhou comigo, por ter demorado tanto. Não posso abusar.
Aparece quando quiseres.

Encheu o cântaro, e saiu caminhando com passo apresado, não fosse a mãe achar que tinha demorado.
Enquanto ele a via perder-se por entre a vegetação, ao fundo da vereda.

Capitulo III

A noite cai em Coimbra depois de um dia esgotante de aulas teóricas. A chegada ao quarto alugado na parte alta da cidade, onde mantinha na parede um esboço do rosto de Adelaide, no qual saltava à vista os olhos verdejantes nele pintados, retrato fiel desenhado com incrível habilidade. A chegada é assinalada pelo run run emitido pela sua gata Farrusca, que depois de um dia sozinha no quarto, ficava eufórica por ver o dono e amigo, que aparecia somente para lhe dar de comer e dormir. Farrusca companheira das longas noites de estudo em véspera de exame. Só quando Gonçalo utiliza seu quarto para outra função que não dormir. E ai Farrusca é mais que uma companhia, é para ela que ele repete a matéria intensivamente, numa tentativa de a decorar, embora ela não lhe dei-a muita atenção, preferindo dormir toda enrosca no calor de seu colo enquanto ele lhe fala.
Convenientemente alimentada, e com a sua dose diária de festas e brincadeira, deixa o quarto e procura também algo que preencha o vazio do seu estômago.
As ruas que dão acesso à taverna da coxa começam a pouco e pouco começam a ganhar movimento, de cavalheiros de todas raças, religiões, e diferentes conotações políticas, uma mistura por vezes não muito amistosa, mas o carisma autoritário da coxa evitava quase sempre que se chegasse a vias de facto.
Gonçalo entra, despe o casaco que pendura no cabide da entrada, assim bem como o chapéu que trazia, cumprimenta as pessoas conhecidas, e pede a habitual taça de vinho. Como sempre é servido por Mercedes, uma linda e esbelta “portuguesa de Olivença” que devido ao etnocídio levado a cabo por aqueles que se dizem “nuestros hermanos” mas que não passam de usurpadores de parte do território português. Que meses antes tivera assentado arraiais por aquelas bandas. Moça de fino traço, que se viu obrigada a ingressar em tal vida. A sua família de origem nobre tinha perdido tudo, com a ocupação ilegal de Olivença pelo exército espanhol em 1801. E apesar dos tratados internacionais assinados para restituir a fronteira original, nunca o fizeram por não serem dignos de respeitar seus antepassados, mais interessados em exterminam a cultura de um povo.
Seus pais quiseram dar-lhe nome português, que não foi aceite pelo governo espanhol, devido a sua politica de apagar seiscentos anos de história de presença portuguesa naquela cidade.
Sem nada ter, teve que procurar deste lado da fronteira melhor sorte, um dia apareceu morta de fome à taverna da coxa, a qual a acolheu dando-lhe comida e roupa lavada a troco do seu trabalho. A coxa era uma mulher muito experiente, depressa viu que seria um bom negócio mantê-la a trabalhar na taverna. Nada como uma mulher bonita para arrastar até lá a clientela.
Mais tarde ela veio-se a apaixonar por Gonçalo, que de inicio não lhe achou muita graça por ainda estar enamorado por Adelaide. Mas com o passar do tempo foi caindo no jogo de sedução da bonita espanhola, já que faziam quase cinco anos que tivera a noticia que Adelaide tivera entrado no convento, e desde ai nunca mais tinha recebido uma única noticia que fosse do seu paradeiro. Tinha por todos os meios tentado saber qual o convento para onde a tinham levado, mas todas as suas tentativas de a encontrar tinham sido goradas.
A taça de vinho chega mesmo a horas de brindar à republica, com o seu rol de amigos , quase todos universitários, à excepção de Gabriel de Sousa Mendes que deixara os estudos a meio para ir trabalhar para o jornal. E que de todos era o mais entusiasta da causa republicana e amigo de Gonçalo. Já se tinham metido em mil aventuras, inclusive Gabriel já tinha dado seu sangue em defesa de Gonçalo num desentendimento com monárquicos, em que se feriu num dos braços para o salvar. Para Gonçalo era-lhe tão grato, que chegava a dizer que lhe tivera salvo a vida.
Mas esta amizade tinha sofrido duro golpe com o envolvimento de Gonçalo e Mercedes, estando mesmo ferida de morte. Gabriel era completamente louco por Mercedes, e não compreendia porque o amigo não gostando dela lhe fazia a corte. Mas para seu pesar, ela não lhe ligava a menor importância, fazendo mesmo de conta que ele não existia…
A troca de olhares entre Mercedes e Gonçalo, começa a ser por demais evidente e a irritar ao amigo, que para não apreciar tal espectáculo se retira apresentando uma desculpa qualquer.
A conversa parece animada, o tema são as novas caloiras que este ano entraram, e fazem as delícias de quem passa pelos corredores.
A coxa aparece para perguntar se está tudo conforme, e disfarçadamente entrega a Gonçalo um bilhete de Mercedes.
Este pede licença para ir à casa de banho, e levanta-se como quem não quer a coisa, mas a sua única intenção é ver o que tem dentro do bilhete.
Lava as mãos, olha-se como está ao espelho, um verdadeiro luxo para uma taverna naquela época. Abre e lê:

- Vem ter comigo ao Penedo da Saudade. Quando eu sair.

Fica meio reticente em aceitar, mas ao chegar lá dentro olha para ela deslumbrante, atraindo os olhares de todo o presente, resolve acenar-lhe afirmativamente. Afinal não podia rejeitar tal dádiva de Deus. Quando todos a procuravam, ela engraçou-se logo por ele que não lhe dava a menor atenção, fazia-lhe um pouco de confusão. Mas quem sabe se não era uma boa maneira de esquecer Adelaide, o Amor impossível que lhe foi arrancado do coração por uma mera promessa à Rainha Santa Isabel.
A noite avança indiferente aos ponteiros do relógio, o clima de amena cavaqueira é propício a mais uma rodada e mais outra nunca é demais. Até o debate perder a clareza das ideias, se turvar as consciências, embriagadas que estão nada dizem de útil, enveredam por caminhos triviais e muito calorosos.
Quando dão por eles são os únicos que permanecem, uma casa cheia se esvaziou sem darem conta disso, entretidos que estavam. São eles que impedem a casa de fechar, enquanto que as empregadas já arrumam para estar tudo pronto para a abertura umas horas mais tarde. Até que a Coxa resolve educadamente pedir que compreendam que também precisam de descansar, por favor para se retirarem que amanhã abria outra vez.
E assim foi cada um cambaleando para seu lado. Lá fora já estava Gabriel a tremer de frio, que esperava a saída de Gonçalo. Foi um alívio quando o viu sair sozinho, sem a companhia da bela Mercedes, mas pelo sim pelo não resolve segui-lo para ver se ia logo para casa.
Gonçalo toma o caminho habitual para casa. Quando ia já a meio lembra-se do que havia combinado, e inesperadamente muda de rumo para espanto de Gabriel. Que pensa:
- Onde irá este agora, com uma bebedeira desta? Não há mais nada aberto a esta hora. É melhor ir atrás dele, ainda caia para ai. Preocupado com o amigo.

Chega ao penedo da saudade já lá estava Mercedes, o que enfurece Gabriel.

- Pensava que já não vinhas!
- Claro que vinha. Só fui levar um amigo a casa que bebeu de mais.
- Ah, está bem. Mas que tu também precisas que te levem a casa.
- Eu? Não eu estou bem… Enquanto profere estas palavras, tem uma enorme nauseia e não consegue acabar a frase. Enquanto Gabriel ri atrás dum arbusto.
- Bem, estou a ver que sim.
- Não te preocupes isto passa…
- Agarra-te a mim vou levar-te a casa e fazer-te um chá… é melhor.
- Isto já passa, não há-de ser nada.
- Acredito, mas fico mais descansada se for assim.

E ele agarra-se a ela e seguem para casa dele, para grande desgosto de Gabriel, que não podia acreditar no sucedido. A mulher que amava a levar o melhor amigo para casa.
Entraram e logo apareceu a Farrusca a miar, e a se passear entre as pernas de Mercedes.

- Tão fofinha! Como se chama?
- Farrusca. E é a minha companhia da solidão do quarto!
- Bem aqui não tens nada em que possa fazer o chá?
- Pois não, mas fica mais um pouco, sempre podemos conversar.
- Está bem. De que falamos.
- De como era a tua vida em Espanha. Como vieste aqui parar?

E falaram de tudo um pouco, dos tempos de criança, da sua chegada, das suas famílias, de pontos de vista comuns, do Amor imortal que Gonçalo nutria por Adelaide, de tudo expuseram a nu suas vidas ali em breves horas.
Até que ela começa a olhar para ele de forma diferente, fixando seu olhar, e quando não é que Mercedes rouba-lhe um beijo, que Gonçalo corresponde de imediato carinhosamente.
Depois apagaram-se as luzes, e ela só saiu no dia seguinte.

Capitulo IV

Três semanas mais tarde. Está Gonçalo ainda a dormir quando ouve o bater de forma insistente do carteiro à sua porta. Não é normal receber correspondência nesta morada, quando recebe é normalmente o seu pai que lhe manda a mesada. Desta vez deve-se ter adiantado, mas já tinha recebido duas semanas antes não podia ser. Tentava pensar o que seria, para tão incomodativa visita, mas não conseguia compreender.
Recebe a carta, vê no remetente de facto é mesmo seu pai, o selo do lacre também é o da sua família.
Abre logo apresado, morto de curiosidade, e ao ler não podia acreditar, seu pai exigia que regressa-se ainda esta semana para conversarem sobre a vida que levava em Coimbra, e mais não dizia.
Tinha sido Gabriel, que escrevera a seu pai, ruído de ciúmes de Mercedes. Numa tentativa desesperada de os separar, resolveu informa-lo da vida que Gonçalo levava em Coimbra. As noites perdidas na taverna da Coxa, o envolvimento em rixas tendo a política como mote, e o mais relevante, o seu mais recente envolvimento com Mercedes de Marialva, uma reles empregada de mesa aos olhos de seu pai.
Ordens do pai não podiam ser contrariadas de modo algum, teria de fazer malas mesmo sem saber porque motivo o pai o havia chamado com tanta urgência.
E assim fez, nesse mesmo dia partiu, a viagem era longa, não havia tempo a perder.
Chegando à Régua, o pai não estava em casa, tinha saído para a quinta, só voltava à noitinha. Foi logo sondando o assunto junto da mãe, que lhe disse nada saber para além de que tinha ficado assim depois de ter recebido uma carta sem remetente.
Pensou logo que tinha de ler essa carta custasse o que custasse, foi então que entrou no escritório onde o pai passava o maior parte do tempo quando estava em casa. À primeira vista estava tudo arrumado em seu lugar, nada de novo embora não entrasse ali à alguns meses. Faltava apenas ver na gaveta da escrivaninha, que estava trancada. Foi então que se lembrou de quando era mais novo, gostava de mexer nas coisas do pai, e por acaso descobriu na altura onde ele guardava a chave, mesmo por cima de uma estante que continha os livros de registos, na altura precisava de um banco para chegar lá a cima, mas hoje em dia tornava-se completamente desnecessário.
Pegou na chave e abriu a gaveta, lá estava ela até parecia que estava a sorrir para ele, o que continha dentro e que não lhe daria motivos para sorrir certamente.
Não podia acreditar no que seus olhos viam, embora fosse tudo verdade, não podia haver alguém tão mesquinho, para cometer tal acto de deslealdade até para com um desconhecido, aquela letra era-lhe familiar.
Começou a matutar logo que haveria de dizer ao pai, como poderia mudar a verdade dos factos em seu benefício. O pai já não via com bons olhos o seu estudo, se tivesse a certeza que andava metido nessas aventuras todas, seria o fim da sua carreira de médico e político, disso não havia a menor duvida.
Passou a tarde toda a pensar, para quando o pai chegasse para ter as respostas na ponta da língua, se falhasse ou hesitasse um só momento, seria bem possível não voltar a Coimbra nem para buscar as suas próprias coisas.
O pai chegou e mesmo antes do jantar quis falar com Gonçalo:

- Então diz-me lá que andas a fazer em Coimbra?
- A estudar como poucos. E enquanto dizia isto tirou o boletim de notas do último semestre, apesar de pouco estudar, as suas notas eram expendidas.
- Bem, contra factos não há argumentos, as tuas notas são muito boas.
Mas chegou-me aos ouvidos que andavas metido em brigas à conta da política. Eu já não te tinha dito, que não queria que andasses metido com essa gente?
- Tive que me integrar num desses grupos de pensamentos livres, porque tinha um trabalho para apresentar sobre política contemporânea. Tive azar de estar no local errado à hora errada, foi no bar da associação académica poderia ter acontecido mesmo que não fizesse parte do grupo.
- Essa história não me convence, mas está bem…
E também me disseram que andavas metido com uma rapariga qualquer, uma tal de Mercedes de Marialva. Uma espanhola sem eira nem beira.
- Em primeiro lugar, ela não é espanhola, porque quem nasce em Olivença é tão português como todos os outros.
Conheço sim essa rapariga, pois como o pai sabe estou a residir num quarto, e tenho de ir jantar a algum lado. Depois de muito procurar encontrei um sítio calmo e acolhedor onde pudesse fazer a refeição da noite, essa rapariga apenas trabalha lá. Não estou a ver que mal pode haver nisto.
- Espero bem que seja verdade. Vou andar de olho em ti.
Agora vamos mas é jantar, que a tua mãe já ta à espera.

Não querendo tocar mais no assunto com o pai, mas conhecia bem a letra daquela carta, era muitíssimo parecida a de alguém que conhecia muito bem. E seria a parte mais interessada em o ver afastado de Coimbra. Mas era melhor não se meter em mais confusões, a paciência do pai estava por um fio.

Capitulo V

No caminho de volta a Coimbra qual não é o seu espanto, vê ao longe o mesmo mendigo que cinco anos antes lhe tinha falado de Adelaide. Procura chegar até ele e ver se ele sabe alguma coisa da mulher mais linda do mundo a seus olhos.
Parecia que de repente tudo lhe estava a vir à memória, uma cascata de emoções, vividas no passado mas ainda muito sentidas no presente. Solta-se um enorme sorriso ao relembrar o primeiro beijo.
Era uma tarde de sol de Outono, por todo lados se viam folhas caducas espalhadas pelo chão. Era um espectáculo digno de admirar a vista. O vento soprava forte, muitas mais folhas se soltavam parecendo flutuar no ar, caindo na sua lenta precipitação, pairando por breves segundos no ar.
É neste ambiente perfeitamente romântico que aparece Adelaide, com o rosto descoberto, mostrando a felicidade de um sorriso.
Gonçalo tinha jurado a ele mesmo que de hoje não passava, tinha de lhe dizer o quanto ela lhe era cara. Que não suportava a ideia de ter de a deixar de ver.
Como achava a vida injusta, se pudesse seria ele a cumprir a promessa de sua mãe, só para não a ver enclausurada naquela masmorra conventual.
Mas que podia acreditar que ser cárcere seria ainda maior, viver sem o toque suave de sua mão, sem sua voz de menina.
Enquanto dizia isto para si mesmo, sonhando em voz alta. Adelaide que tinha chegado de mansinho já ali estava sentada do seu lado, ouvindo seus murmúrios, e sorrindo a cada palavra.
Quando abre os olhos vê-a a olhar para sim, não podia haver melhor alucinação, ou melhor até havia se fosse a de um beijo que ela lhe deu na face. Pareceu-lhe real de mais para ser um sonho, então belisca-se e começa a acreditar ser possível.

- Porque fizeste isto?
- Porque estava aqui a ouvir-te falar de mim com tanto carinho que me apeteceu.
- Gosto de ti de verdade…
- Também gosto muito de ti!

E nisto Gonçalo não resiste e rouba-lhe um beijo de Amor…
Que ela corresponde, mas terminado abala correndo como se tivesse cometido o pior de todos os pecados, até se esquecendo do cântaro vazio ao lado da bica.

Passadas todas estas memórias pela mente, Gonçalo chega ao pé do mendigo para saber noticias de Adelaide.

- Bom dia senhor. Lembra-se de mim?
- Como poderia esquecer alma tão caridosa nobre senhor?
- Sabe alguma coisa de Adelaide?
- Sei sim. Ela entrou no convento de Santa Clara-a-velha, onde repousam os restos mortais da Rainha Santa Isabel, no exacto dia que fazia dezasseis anos. Mais não sei nobre senhor.

Fazia todo sentido a sua mãe era devota da Rainha Santa Isabel, que ao levar pão para os pobres é abordada por D. Dinis que lhe pergunta que leva em seu regaço responde “ são rosas, meu senhor, são rosas” abrindo o regaço e o pão se transforma em rosas.
Ironia do destino, o convento de Santa Clara-a-velha era em Coimbra, ela sempre estivera ali junto dele, por detrás dos muros do convento, mas tão perto que agora já dava para ouvir o seu respirar.
Recompensa o mendigo e segue viagem, para Coimbra a morada dos olhos do seu coração.